Entrevista com Luís Filipe Silva na Dagon nº0!

Entrevista:

Luís Filipe Silva

por Roberto Mendes

Dagon nºzero

Com que idade começou o seu interesse pelo fantástico? Bem sei que
é uma pergunta difícil mas… sabe porque começou este interesse?

O despertar terá ocorrido algures nos primórdios da leitura, quando
tudo o que existia era a banda desenhada e as séries televisivas. Era
impossível afastar-me do ecrã quando começava um Espaço: 1999, uma Galáctica, um Twilight Zone, um Conan – O Rapaz do Futuro… (por
sinal, já então o Star Trek não despertava grande interesse).
Lembro-me distintamente de desenhar álbuns inteiros de odisseias
espaciais com personagens inspiradas na Disney (queria então que o meu
futuro fosse participar na criação de longas metragens de animação).
Ou seja, algures a partir dos 8, 10 anos comecei vincadamente a gostar
de Ficção Científica, e o salto para a leitura em prosa foi mínimo.

Quanto ao motivo do interesse, sem dúvida o sentido do maravilhoso e o
deslumbramento da ciência. Não seria um pensamento consciente, mas por
base estaria a admiração profunda por o universo não só ser mais
complexo e admirável do que éramos capazes de conceber na nossa
imaginação como ser passível de entendimento. Quantos livros de física
e astronomia devorei na adolescência…

Que livros o despertaram para a literatura Fantástica?

TEMPESTADE NO TEMPO de Gordon R Dickson foi sem dúvida o que me
impeliu a escrever a sério, aos 12 anos. Até então tudo o que
conseguia encontrar a nível da colecção de bolso da Europa-América foi
imprescindível para o meu amadurecimento progressivo e a percepção que
a FC era muito mais do que viagens e aventuras no espaço. Não há como
fugir ao encontro com NO BLADE OF GRASS e UBIK e AVATAR, e outros, que
me fizeram expandir, em poucos meses, a minha ideia do que a
literatura – em particular a fantástica – era capaz de alcançar.
Nesses tempos, até as “novelizações” de séries e filmes eram
inteligentes, e em particular, o trabalho de Robert Thurston com os
primeiros quatro livros da série Galáctica são bons exemplos de como
se pode enriquecer o material de base em termos de profundidade
temática e complexidade dos personagens (que decididamente a série
televisiva não tinha).

Depois estaria atento aos autores do género, e isso levar-me-ia
rapidamente a descobrir um Heinlein em capa cinzenta pequena, e por
este saber que existia algo chamado Argonauta. O resto, como dizem, é
enredo…

Quais são os autores que mais o influenciaram?

Penso que esta é uma simpática pergunta de algibeira… Isto porque na verdade serão múltiplas e variadas as fontes
de influência de quem procura escrever, e não se limitam
necessariamente a autores ou obras – por vezes, no meio do filme mais disparatado, surge uma fala ou um truque de enredo que brilha como um diamante deitado para o lixo. É uma questão de estar atento, de ter um problema ou uma interrogação em mente (“como é que tiro o herói deste “enrascanço”, “como é que a aldeia vai reagir à confissão do miúdo”, “que tempo narrativo usar para uma história de saltos no tempo”). E nem sempre o que influenciará uma história servirá para outra. Lembro-me que um conto em particular, já lá vai o tempo, a “Série Convergente”, que recorre a uma forma entrecortada a nível temporal para apresentar um enredo simples resultou da influência mista de várias bandas desenhadas, dois filmes e um conto, cada qual contribuindo com uma sugestão distinta para o resultado final. Efectivamente não há nada debaixo do sol, excepto as sombras que traça na paisagem, e estas contam muitas histórias.

A nível global, os críticos ajudaram-me tanto quanto os autores. Os bons críticos explicam o que funciona e o que está desenquadrado, apontam para exageros ou faltas de ambição. Tudo o que se escreve resulta de opções, e por vezes é preciso alguém que está atento entender que rumo o autor pretendia seguir e porque não conseguiu lá chegar. Como em tudo, Portugal tem também falta de bons críticos, embora tenhamos alguns excepcionais, momento em que gostava de destacar o bom trabalho do João Seixas nesta área.

Não quero com isto afirmar que não tenho os meus autores preferidos, e que eles não me influenciaram. Em diversos graus de importância, o meu modo de pensar e escrever seria bastante diferente se não tivessem existido Ursula LeGuin, Theodore Sturgeon, Bruce Sterling, William Gibson, Lucius Shepard, João de Melo, Sartre, Ellery Queen, Ruth Rendell, Frank Herbert, James Tiptree Jr, Frank Miller, só para retirar alguns da tômbola.

Acha que os escritores portugueses podem rivalizar em qualidade com
os escritores estrangeiros?

Perfeitamente. Todas as línguas têm os seus escritores de destaque, e a nossa tem uma forte tradição a nível literário, além de ter uma riqueza suficiente para permitir a qualquer autor exprimir-se no limite da sua capacidade.

Claro que para isto acontecer é preciso que se criem as condições necessárias para o autor poder crescer e aprender. Não é à toa que equacionamos os escritores estrangeiros com qualidade.

E não se trata propriamente da questão estatística dos números – a quantidade ajuda, obviamente, mas se têm muitos bons escritores, têm escritores maus e horríveis em maior número… O que está em causa é que os melhores de entre eles estão acima dos melhores de entre nós – é isso que deve ser comparado.

Aqui entra a questão das condições – condições de mercado que permitam a um autor profissionalizar-se, ou seja, viver da escrita e da profissão de autor (incluindo palestras, entrevistas televisivas, etc., que são pagas no estrangeiro mas aqui não); ao viver da escrita, ser-lhe-á possível dedicar-se à literatura a tempo inteiro, e logo escrever mais ou trabalhar melhor o que escreve.

As condições não são só financeiras, mas de discurso literário. Quando muitos autores, leitores e críticos se juntam nasce um movimento. Um movimento é o que resulta de uma prática que se vai melhorando. Os críticos constroem um padrão e estabelecem normas, os autores quebram as normas e enriquecem o conjunto, os leitores divertem-se no processo e incentivam à continuação. Este tipo de discurso tem possibilitado à FC no estrangeiro evoluir de meros contos pulp de máquinas, monstros e enredos imberbes para uma especulação efectiva sobre o futuro e o movimento das civilizações e o significado do ser humano quando confrontado com o Outro.

A nós falta-nos esse discurso, e se aprendemos com a manifestação alheia, e por ela conseguimos avaliar a nossa escrita e utilizar algumas das lições ditadas pelos outros, a verdade é que não é um processo que consiga desenvolver-se com alguma autonomia – os nossos críticos regem-se pelos ditames alheios, os leitores em grande medida desconhecem a história nacional do género, e os autores, por falta de tempo, jeito ou vontade, não tentam sequer entender que não podem começar do zero e que há que passar a um nível de sofisticação elevado por estarem numa competição internacional que dura há décadas… Não digo que se deva virar as costas ao que se faz lá fora nem isso seja minimamente benéfico, mas a condição permanente de estarmos constantemente a espreitar a festa pela janela e a tentar imitá-la no meio da rua torna difícil, ou mesmo impossível, o surgimento de uma abordagem nacional, de uma literatura fantástica de cariz lusitano.

O mundo não precisa de FC americana escrita em português (já existem afinal tantos americanos a fazê-lo) mas sim de autores que consigam aproveitar a distância cultural e, livres dos vícios históricos e conjunturais dos seus colegas além-mar, reinterpretem o género, renovem as fundações em que assenta e o transportem, no seio da própria língua, para o século XXI. Dessa forma conseguiremos ter autonomia e legitimidade para contribuir para o panorama mundial do fantástico, com autores que assumam orgulhosamente que pertencem ao género.

Como vive o actual “boom” de literatura fantástica em Portugal? Ou

será este “boom” uma ilusão?

O boom é um facto: a literatura fantástica impôs-se como mercado e preenche uma boa percentagem das prateleiras disponíveis. Existem secções dedicadas ao género nas principais livrarias e tem-se assistido a uma agradável disputa entre as editoras para conquistar leitores pela introdução rápida das mais recentes obras internacionais, algo que até há poucos anos acontecia por acaso. Ora, edição (permanente e crescente) não existe sem interesse, e interesse implica leitores. Pelo que se pode afirmar que o boom da edição é na verdade um boom da leitura, o que só pode ser positivo. Por arrastamento, vem a contribuição dos autores portugueses, pois as editoras começam a procurar a prata da casa para complementar o catálogo…

O boom é uma ilusão: quantidade não implica variedade, e nunca representou necessariamente qualidade. Não existe um boom de literatura fantástica, mas um crescimento de alguns temas dentro do vasto universo da literatura fantástica. Abundam os livros de vampiros, goblins, jovens mágicos a quem é prometido o universo sem ainda terem tido oportunidade de demonstrar o seu valor. Ficam no caminho os romances, outrora preferidos, de exploração espacial, contacto com alienígenas, sociedades futuras, hiper-tecnologia. Ficam esquecidas as temáticas surrealistas, o terror, o sobrenatural não urbano. É dado destaque desmesurado a jovens autores que ainda agora começaram a escrever, que não apresentam ideias novas e originais sobre os temas que abordam – como dita a regra do bom senso, para um punhado de bons haverá muitos que não mereciam igual atenção. E para o lado foram afastados autores de outras gerações, ou que não abordam exactamente o assunto do momento, mas que teriam mais para dizer (e fascinar).

Colocando-lhe uma questão semelhante à colocada ao Jorge Candeias,
acha que os blogues sobre literatura fantástica apresentam qualidade
suficiente para conquistar novos públicos?

Depende. Há vários tipos de blogues – alguns mais pessoais e de ocasião, outros com aspirações de maior formalismo. Entre a opinião e a crítica experiente e fundamentada existe um espectro de variações. Creio que o grande ponto a favor é que, mais importante que o factor de qualidade é a mera diversidade, que por um lado demonstra o tal interesse atrás referido e por outro possibilita que cada gosto particular encontre o que procura.

O que me parece que falte serão blogues interessados no passado da literatura fantástica, em particular o passado nacional. A história é a grande lacuna da internet – quem entrasse no nosso mundo e se limitasse a analisar esta biblioteca virtual ficaria com a ideia que a sociedade humana teria nascido há poucas décadas, tal é o interesse (relativo) que se confere aos acontecimentos do dia-a-dia. A memória é importante para cada ser, para cada cultura. Depois de nós virá quem nos tenha esquecido. Se nos cumpre manter o registo de quem somos e o que fizemos, também nos cumpre lembrar quem nos antecedeu. De destacar o excelente trabalho que João Seixas fez no seu blogue Blade Runner em Novembro passado, durante o qual foi buscar às prateleiras edições de antanho e as apresentou, ao ritmo de uma por dia, aos leitores.

E que blogues portugueses destaca neste momento?

Sigo com muito interesse os blogues de quem mais de perto contribui para a literatura fantástica – entre autores, críticos e editores. Sem prejuízo dos restantes, faço notar os blogues do David Soares, da Safaa Dib, do João Seixas, da Cristina Alves, do Nuno Fonseca. O Rui Pedro Baptista tem, recentemente, apresentado recensões a um ritmo invejável, que espero possa manter. Blogues colectivos como o Correio do Fantástico são imprescindíveis mas têm uma semi-vida curta (sendo a «Trilha de Moebius» talvez o caso mais flagrante). Existem outros que entretanto se afastaram um pouco do tema, mas cujos autores vão mantendo presença assídua em fóruns de discussão. E outros ainda que gostaria que iniciassem ou regressassem a uma presença bloguística.

A nível dos “portugueses” de além-mar, que segundo uma notícia do Google, são o segundo país que mais contribui para o fenómeno bloguista, refiro, de entre as dezenas de sítios interessantes, o Universo Fantástico, a Cristina Lasaitis, o Fábio Fernandes, Hugo Vera, Bráulio Tavares, Ana Cristina Rodrigues, Tibor Moricz, Fernando Trevisan, a Maria Helena Bandeira, o Octávio Aragão, e tantos outros.

E será que a literatura fantástica tem hoje maior incidência nos
leitores através da internet ou continua a mensagem a passar através
dos livros? Ou seja, será que o “Boom” foi criado pela internet?

Bem, só uma análise estatística poderia responder com legitimidade à pergunta. Mas a internet sem dúvida que contribuiu, pela facilidade de comunicação e divulgação de qualquer tema. E contribuiu em grande medida a nível do fantástico português, permitindo que se concretizassem projectos que de outra forma seriam quase impossíveis de chegar ao fim (veja-se, a título de exemplo, o exercício que tentei construir à volta da elaboração alternativa da antologia “Por Universos Nunca Dantes Navegados” num universo sem internet, publicado na Bang! 4).

Estará o futuro do fantástico nas artes em Portugal assegurado,
contando com valores tão importantes como o próprio Luís Filipe Silva,
como o David Soares ou o Jorge Candeias, entre outros?

O futuro do fantástico nas artes em Portugal estará assegurado desde que se consiga garantir o sagrado triângulo da criação: aquele que tem por cantos o autor, o leitor e o crítico, cada qual a contribuir com a sua função, de forma equiparada e em dinâmico equilíbrio.

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