ÍNDICE
CONTO 1 – A Porta! – Roberto Mendes
CONTO 2 – Marvlin – Valter Marques
Depois de algum tempo parado, o Correio do Fantástico pretende agora criar um maior dinamismo no seu conteúdo, apostando para isso na divulgação do género através da publicação de contos curtos numa nova secção criada para esse efeito. Começamos por republicar alguns contos já disponíveis na Internet ou nos números zero e um da revista Dagon, mas temos a ambição de, sempre que exista a possibilidade, publicar alguns originais.
O ÍNDICE será a peça chave desta secção, visto que não permite, infelizmente, a publicação dos contos através de posts distintos, servindo mais como um mural onde os contos ficarão estampados. Decidimos por isso criar um índice que ficará visível na parte superior da secção, o qual iremos actualizando sempre que ficar disponível mais um conto.
Roberto Mendes
A Porta!
Roberto Mendes
Lembro-me que o dia acordou em tons laranja e com um cheiro doce de canela e mel; Agora o sol já perpetuou a sua viagem pelo céu, pintando-o de azul celeste pela manhã,
salpicando-o de cinzento-escuro pela tarde: fazendo a chuva cair pela terra: o cheiro
molhado a imperar. O feixe de luz que entrava pela janela de vidros sujos iluminava parte do meu corpo sentado com as costas apoiadas na parede da antiga sala. Lembro-me de ter esticado o braço e aberto a mão numa frustrada tentativa de a agarrar: a luz! Mas apenas consegui fazer dançar o pó que consumia o ar; retirei a mão sem pedir desculpa ao pó que acabou por voltar à sua posição inicial: a dançar, a dançar na luz; Nas minhas mãos tenho uma chave; uma pesada chave de latão, amarela, pesada por ser antiga, pesada por ser daquela porta, da porta que nunca abri. Agora o sol já se deitou na sua cama ardente e todos dormem, mas eu estou acordado no luar. Olho a porta mágica; a sua madeira corroída pelo tempo, tanto tempo. É a porta de meu pai, a porta que nunca me foi permitida, a minha porta amiga! O tempo que passei a olhá-la, somado pela ampulheta eterna, é superior a uma eternidade. Passei mais tempo a admirá-la do que a viver; aliás, não vivia enquanto não a olhava. A minha mente recua, recordo o dia em que a vi pela primeira vez:
Tinha oito anos, a minha família havia-se mudado para uma pequena casa no campo, fugindo de um passado que nunca percebi.. A casa era muito simples, bastante humilde. Nada se destacava a não ser uma velha porta de carvalho escuro. Até aqui nada de especial, contudo esta porta estava repleta de trancas que finalizavam longas correntes de ferro. Era vedada, proibida desde o primeiro dia pelo meu pai. Fascinava-me aquela porta. Dedilhei as correntes, sentindo o frio ferro na pele. Um enorme desejo de entrar levou-me a pegar nas fechaduras num movimento rápido, quase me esqueci que seria impossível forçar correntes tão colossais. De súbito recordei as ordens do meu pai e, assustado, emergi do meu profundo transe rodando sobre mim mesmo numa fracassada tentativa de emendar o erro cometido, mas era tarde demais; Um enorme punho cerrado, agigantado pelo medo que senti, abateu-se sobre a minha face fazendo-me girar no ar, corpo atirado no vazio, ferido ensombrado pela lamacenta passagem do tempo pela realidade que se alimenta de todos nós. Cuspi sangue na porta, gotículas da minha individualidade que se juntaram àquele misterioso ser que me fascinava. Atordoado tentei levantar-me mas ao ver a porta conspurcada com o meu sangue o meu pai desferiu um enorme pontapé no meu estômago, levando a que a pesada bota de cabedal emitisse um impacto surdo que pareceu perfurar o meu corpo. Cuspi mais sangue vermelho vivo, repleto de viscosidade e dor, sangue que jorrou directamente para os tacos de madeira que me abrigavam, trincheira de guerra do soldado moribundo.
Olho agora para a porta, semi descoberta pela bela luz lunar e admiro os resquícios de sangue que ainda ali permanecem, tão decididos a nunca a abandonarem, tal como eu.
Ali fiquei, prostrado no chão numa falsa imobilidade, rezando baixinho para que tudo parasse…e, ainda que incitado pelo meu pai, eu não ousava levantar-me:
– Levanta-te! Enfrenta-me como um homem – vociferava;
Não me levantei, não consegui reunir a coragem suficiente para tão grande esforço. Ainda ouvi um desdenhoso “maricas” que prontamente foi abafado pelos meus gritos de dor enquanto era pontapeado mais alguns segundos que me pareceram uma eternidade. Finalmente os golpes pararam e eu agradeci a todos os Deuses por ter sobrevivido, abri os olhos e vi o sorriso doentio que desenhava a cara do meu pai em tons de orgulho e prazer.
-Olha o que me fizeste fazer… – atirou ele antes de me deixar batendo com a porta que dava acesso ao seu quarto. Fiquei ali, enroscado em dor, aninhado em solidão. No meu delírio de tortura pensei ter ouvido uma voz sibilante que me garantia que tudo ficaria bem. Ouvi ainda o som de vidro a quebrar e os gritos da minha mãe enquanto o meu pai se divertia; adormeci…
“Acorda meu pequenino; acorda agora pois a mim já me acordaste; ah, à mil anos ou mais que durmo, esquecida no tempo, não mais que simples espectro pestilento, envolvida em branco impuro tingido de negro, pintado de escuro…acorda pequenino e viverás…” a voz sibilante fazia soar as suas palavras no interior do meu espírito. Seria um sonho? Ou o sonho seria a realidade? Pois como poderemos saber se o sonho é, na verdade, a realidade e a realidade é o verdadeiro sonho? Podemos acordar (ou pensar que acordamos) quando na verdade adormecemos. A vida real pode ser o sonho… a minha mente deambulava entre pensamentos, nunca soube bem porquê mas sempre me fascinou pensar, e a minha mente sempre fervilhou com milhares de pensamentos simultâneos, que me assaltavam, tomando conta de mim, paralisando-me, intensidade incontrolada no mundo das ideias; E foi assim que acordei (ou será que adormeci?), envolvido pelas palavras doces de uma voz que não conhecia, mas que logo amei. Os raios do sol madrugadores emprestavam à sala uma aura incandescente. Obriguei-me a levantar e com um rápido e doloroso duche limpei o sangue seco e coagulado das minhas feridas. Entrei na cozinha, a minha mãe chorava, abracei-a e saí sem comer nada. O meu estômago latejava de dor. Pendurado na porta estava um cartaz escrito à mão: “que ninguém toque na porta, senão…”; que palavras meigas tem o meu pai, pensei. Saí e abracei a manhã doirada e verdejante. Explorei a área circundante sem encontrar nada que me fizesse olhar duas vezes até que me deparei com um trilho que passava por entre o bosque, aquele caminho atraía-me! Segui-o. Era bom saborear a brisa fresca que se fazia sentir. Na minha solidão recordei a voz que me envolvera, que sonho estranho, conclui. Caminhava à largos minutos quando o vi. Não esperava encontrá-lo ali, nem ali nem em qualquer outro lugar, não, não, não… Um grito mudo inflamou o meu peito ao ver o seu sorriso inconfundível.
-Vem aqui! – Obedeci prontamente. Ele estava encostado a uma enorme e velha sequóia. O seu serrote repousava no chão. Odeie-me por me ter sentido atraído por aquele caminho, que armadilha diabólica.
– Sobe a esta árvore – a sequóia agigantava-se a todo o bosque, paralisei;
– Obedece – não me mexi – Obedece raios, sou teu pai…
O meu corpo arrancou-me da minha inércia escapando por pouco a um pontapé que se perdeu no ar. De súbito estava sentado em cima de um grosso ramo da árvore, talvez a dois metros do solo. O meu pai parecia satisfeito.
– À muito tempo que quero saber algo; quero saber se o meu filho confia no seu pai! Deixa-te cair, confia em mim e eu apanhar-te-ei, prometo. – o medo insurgiu-se contra mim, pânico desmedido que me controlava. Fechei os olhos e deixei-me cair : eu a cair, os meus olhos a abrir, o sorriso rasgado tornando-se numa enorme gargalhada que consumiu o mundo, e eu logo a querer desistir, e eu a cair, e ele a rir, o meu corpo a cair, e ele a sair, e eu a cair…dez segundos, dez minutos, dez horas, dez dias, dez semana, dez meses, dez anos, dez mil anos…e uma lágrima a surgir, e ele sempre a rir, e o grito abafado sem sair: os meus ossos a partir…
– Nunca confies em ninguém, esta é a lição que te ofereço;
A noite ainda me abraça e as lágrimas teimam em rolar pela minha cara; olho-a de novo. Apenas ela me compreende. Tudo o que fiz foi por ela, pela minha porta mágica, pela minha voz sibilante. A chave torna-se cada vez mais pesada e a minha mente recua de novo…
Os meus dias tinham apenas um propósito, admirá-la passar tempo com ela, imaginar os mil mundos que me eram descritos pela voz sibilante; se ao menos pudesse entrar; “comigo poderias ir para onde quisesses, para que tempo e espaço quisesses pois eu sou o portal dos mundos”; Eu assistia aos breves momentos em que a porta era aberta, apenas o suficiente para que o corpo do meu pai passasse. Ele permanecia ali horas…depois quando a porta reabria era de novo por fugazes segundos e era tão pouco que nunca consegui ver nada… A minha vida resumia-se a um quotidiano fastidioso : acordar e seguir para a escola onde era posto de parte pois era diferente. Chamavam-me o “louco”, ninguém me dirigia a palavra. Chegava a casa para almoçar e de tarde trabalhava com o meu pai, cortando lenha e vendendo-a porta a porta. Não passava u dia sem que precisasse de prescindir de algumas gotas de sangue cansado e triste para que o meu pai se pudesse sentir bem. Tinha apenas uma amiga, a porta! Os dias foram passando sempre iguais…
14 outubro de 1953 : Iria ter um irmão. Era o meu décimo quinto aniversário e iria ter um irmão. Com a cabeça encostada à porta fechada da cozinha eu ouvia a minha mãe contar a uma vizinha: “estou de três meses” dizia ela “quando contas ao teu marido?” perguntou a vizinha ,“não sei”…
1 de Novembro de 1953: Apesar de a barriga da minha mãe ser já um pouco saliente o meu pai ainda não sabia da sua gravidez. Eu estava com ele, desde que soubera que teria um irmão que a vida me sabia melhor; A presença da voz era agora muito mais frequente e até durante o dia eu podia falar com ela. Juntos combinámos como eu acabaria por derrotar o meu pai e como fugiria com a minha mãe e o meu irmão para outro mundo. Caminhávamos na carroça que o meu pai havia construído; O meu pai puxou as rédeas e a mula abrandou. Saímos rapidamente e carregámos dois grandes cestos de lenha. A casa do nosso vizinho é pequena, pintada de branco com um bonito rodapé azul. Entregamos a nossa última carga do dia. O dinheiro é entregue, é tempo de ir para casa. Subimos para a carroça . A mula arranca vagarosamente. O meu vizinho encontra-se no sopé da estrada de terra batida. Grita para nós, o meu pai volta-se e ouve “ desculpa, esqueci-me, parabéns pelo novo rebento” . A expressão do meu pai é colérica. Eu encolho-me de medo.
A nossa casa surge, a noite já cai sobre o dia.. O meu pai entra em casa, na sua mão direita leva um barrote enorme de lenha. Pontapeia a porta da cozinha e avança. Desfere dois golpes com o pau apanhando a minha mãe no dorso e no ventre: já não vou ter um irmão. Sinto o ódio tomar conta da minha consciência, sinto-me enlouquecer, desmaio.
Acordo, a voz não me diz nada, procuro-a ainda antes de abrir os o lhos, chamo por ela mas nada acontece; Abro por fim os olhos, assustado vejo que não sei onde estou. Encontro-me deitado numa pequena cama com um colchão muito duro. Pareço estar num quarto bastante pequeno, as paredes são sufocantes, pintadas de branco, sem mácula, não existe qualquer janela. .Estou desconfortável, tento mexer os braços mas não consigo. Olho e pasmo: um colete branco envolve-me, prendendo-me. Nos meus tornozelos duas correntes prendem-me à cama. Grito, grito muito alto, estou apavorado. Dois homens grandes, médicos vestidos de branco, aparecem de súbito e agarram-me. Um segura numa seringa…depois tudo se tornou muito confuso…adormeço…os anos passam, primeiros dez, depois mais dez e a voz não aparece, e eu longe dela, encerrado no manicómio…
As lágrimas já cessaram. É maravilhoso como quando acabamos por desistir, conformando-nos com a impossibilidade de alcançar o desejado, no exacto momento em que baixamos os braços os nossos sonhos ressurgem, dando-nos nova esperança. Depois de eras negras, séculos obscuros, a voz finalmente voltou! Surgiu triunfante no seu esplendor de perfeição, acordando todos os meus sentidos, acordando em mim sentimentos perdidos. A dor, o desejo e a paixão: Vingança…a palavra surgia doce, trazendo-me um sorriso de prazer.
O sangue lodoso escorre pelo soalho de madeira corroída pelo tempo. Brilha, vermelho vivo infestado de veneno translúcido. Escorre, por vezes só um fio, outras vezes um autêntico rio negro voluptuoso que abraça o mundo. Caminha pelo chão, rodeando o seu corpo. Deitado de costas, com um sorriso cínico pintado sobre olhos de espanto e medo está ele, o meu pai! A poça de sangue é a sua cama, leito divino do pecador; e o sangue galga os orifícios mágicos jorrando para o real, sorrindo para mim, eu sorrio para ele também, sangue do meu sangue, criador entorpecido pela lânguida lâmina afiada.
O sangue pálido desliza, fraco, por entre caminhos tortuosos, vermelho baço, insignificante. Escolhe caminhar para os seus braços, amor eterno de maus tratos doces, envolve-se com ele, sangue viscoso, numa dança inebriante que me revolta o estômago; A minha mãe olha-me com olhos vazios e brancos de censura, morta, pó lançado ao vento; O sangue atinge a porta e não pára, entra e a raiva explode, nem mesmo mortos deixam de se escapar por ela, mas ela é minha, só minha! Rio alto, bem alto e ela ri comigo, finalmente acabei com eles, sou livre, posso entrar e perder-me em cidades escuras cobertas de neblina branca, em mares vermelhos e nuvens azuis.
– És um fraco, sempre o foste; sempre o disse à tua mãe.
O meu coração petrifica, desvio o olhar do chão vermelho e fixo-o: está levantado, o sangue continua a jorrar de forma avassaladora, os seus olhos demonstram-me desprezo.
– Bah, sempre serás um fraco, um louco!
– Eu não sou fraco! – grito acordando a noite.
– És, meu filho, sempre serás fraco. Porquê? Porquê nós? Sempre te protegemos dos teus delírios, sempre cobrimos a tua desgraça. Não percebes que estás louco? – a sua voz soa melodiosa enquanto o seu corpo defunto ganha nova vida, cadáver belo de longos cabelos caídos envoltos numa pasta vermelha de sangue coagulado, oscilando entre o amor e o ódio, a ternura e o horror.
– Mãe, és tu? Mas…como é possível?
– Não sei bem, mas penso que sempre viveremos através de ti, apesar de nos teres assassinado; Sempre viveremos em ti porque tudo fizemos por ti, o amor que te demos, eu e o teu pai, e tudo o que fizemos por ti…talvez tenhamos ganho esse direito, o de perdurar em ti, para que possamos conseguir na morte o que nunca conseguimos em vida, mostrar-te a realidade.- o cadáver da minha mãe juntava-se ao cadáver do meu pai, num abraço de morte. Lágrimas secas escorrem nas suas faces.
– Eu conheço bem a vossa realidade, senti bem a realidade dele, quantas vezes me bateste? E quantas vezes na tua mulher, minha mãe?
– Nunca, nunca vos toquei nem com um dedo. Nunca levantei os braços para nenhum de vocês, nem nunca o faria.
– Mentira – vocifero.
– Não é mentira meu filho – a minha mãe liberta-se do abraço e caminha para mim, toca-me na face com a sua mão gelada; – foste sempre tu meu menino, sempre tu quem bateu. Foste tu que nos obrigas-te a mudar para esta casa, escondendo um terrível segredo, fugindo da morte de dois miúdos da nossa antiga aldeia, dois miúdos que tentaram magoar-te. E logo empunhaste uma lâmina que lhes refreou o ímpeto.
– Não, isso nunca aconteceu, mentes;
– Não minto! Tu nunca viveste a mesma realidade que nós, eras normal, um miúdo doce, contudo, de tempos em tempos sofrias acessos de loucura dos quais nunca te lembravas, e depois sempre culpavas o teu pai, o teu meigo pai que tudo fez para te proteger. Apregoavas ouvir vozes que não existem…
– Não! Cala-te, mentes, mentes, mentes; A voz é real! Existe, é minha amiga, a minha única amiga – o meu braço balança a lâmina de trás para a frente, enterrando-a vezes sem conta no vazio do seu corpo. Paro, assustado; perdi a noção do que fazia e ela olha para mim com uma expressão de compreensão profunda.
– O que tu fizeste ao teu pai não tem perdão, mas ele perdoou-te sempre, sempre.– as lágrimas desciam no rosto do meu pai, nascendo nas cavidades que outrora albergaram olhos fortes. – Certa vez atiraste-te de uma árvore e depois culpas-te o teu pai, a policia e os vizinhos acreditaram em ti e o teu pobre pai quase foi preso. Mas ele perdoou-te. Mas o que nunca poderíamos perdoar veio depois… – e eu vi: eu a sair da carroça com um pau enorme alojado na minha mão, eu a correr e o meu pai a gritar para eu parar, eu a entrar em casa, na cozinha, eu a balançar o pau, um som oco a ressoar: já não vou ter um irmão! Caio de joelhos, incapaz de me concentrar, incapaz de aguentar.
– Nunca te perdoaremos… – soam as vozes dos meus pais. Levanto a cabeça e olho. O que vejo? Dois corpos prostrados no chão, o sangue no sangue; O silêncio, a verdade! Aponto para ela, para a porta, e grito:
– Porquê?
O silêncio enlouquece-me. Levanto-me, empunho a chave numa mão e na outra a lâmina mortífera. A chave entra na porta, quero perder-me nos mundos, agora mais que nunca, pelo menos ainda posso viajar no fantástico, para lá deste universo… um som ouve-se, depois outro. Mais um “clic”, a fechadura é violada. Lentamente a porta abre: uma porta sobre a escuridão profunda de sombras e vultos sem luz. Ali podiam estar mares de cores, céus repletos de estrelas cadentes, cidades mágicas, rios vivos…muito devagar a escuridão é absorvida pela luz, depois os vultos tomam formas e o nada abate-se sobre mim: uma pequena divisão revela-se, poeirenta, quase nua, apenas uma velha secretária e uma cadeira de três pernas… “ Ah, ah, ah…” ouço-a rir… a lâmina atinge-me o coração e eu caio, primeiro de joelhos, depois ouço todo o meu peso abater-se sobre o chão.
Valter Marques
Um autor promissor, de escrita fluída e simples, sempre com muito para contar. Nos seus contos Valter Marques faz coabitar o fantástico com o quotidiano. Não existem limites para a imaginação pois nos seus universos são frequentes os comboios mágicos intergalácticos, montros e o próprio escritor enquanto personagem…
Descubram então este Marvlin e acompanhem as suas derradeiras aventuras…
Valter Marques
Marvlin
Marvlin estava sozinho. No lar que era da família há centenas de anos, ele era o único ocupante. Não tinha recordações dos familiares, excepto do pai, este fora quem o criara. A mãe morrera, pouco tempo depois do seu nascimento, devido a uma qualquer doença. Depois da morte da sua amada, o pai, não conhecera mais nenhuma fêmea. Por isso não houvera mais filhos. Marvlin sentia-se sozinho e esgotado. Aguardava a morte com expectativa, com a mesma impaciência de alguém que espera a chegada de uma prenda anunciada.
O Marvlin era um monstro. Sim, aos olhos de qualquer ser humano, era uma besta horrorosa. Com a aparência de um demónio, algo saído do cruzamento de um lagarto com um morcego e sobre o qual poisara a cabeça de um cavalo de dentes afiados e olhos negros. Sentira o pavor emitido pelas poucas pessoas a quem permitira ser visto. No entanto, para ele, também os frágeis humanos eram feios, tal como o fedor que emitiam das suas cidades barulhentas.
Sabia que se desconfiassem que vivia tão perto deles, mesmo por debaixo dos seus pés, das casas e dos esgotos, o caçariam e tentariam matar. Por esse motivo (e outros) não sentia qualquer tipo de remorsos em matá-los. Nem sempre o fizera, sempre preferira evitar o contacto com tais criaturas, mas agora estava velho, os sentidos já não eram apurados, os músculos não respondiam com o vigor e intensidade da juventude. Estava doente. As presas de pele frágil e carne tenra eram fáceis de caçar. Não podia descer mais baixo, meditou Marvlin com pesar, condenado a comer humanos, imundos e insignificantes.
Recordou com emoção os dias em que percorrera os oceanos e os céus com vigor, sem a sombra do cansaço e o peso dos séculos. Enfrentara maremotos, voara no meio de relâmpagos, na auto-estrada das luzes do norte, por entre as nuvens Mammatus. Nadara nas marés vermelhas e nos buracos azuis, no Pororoca, por entre as maiores ondas e tempestades. Descera até ao fundo do mundo. Caçara e vencera adversários lendários. Arrancara os fortes tentáculos a centenas de polvos gigantes e lulas-colossais, vira milhares de tubarões e orcas assassinas, sangrando. Todos os grandes predadores o temeram. Recordou os combates com ursos polares magníficos e poderosos. Lutou com criaturas que há muito tinham desaparecido, extinguidas. Já não existiam e em breve também ele deixaria de existir. Era o último da sua espécie.
Esta história para ser contada, na sua inteira totalidade, teria que começar nos primórdios dos tempos, quando o mundo foi criado, quando o relógio universal emitiu o primeiro “tic”. Nessa altura o ar era doce, os oceanos pululavam de vida e os barulhos melódicos e misteriosos transbordavam na atmosfera. Seres gigantes sujeitavam o planeta, apenas os fortes sobreviviam. Os da raça de Marvlin nunca foram muitos, eram seres tímidos que apenas procuravam proximidade, com os da mesma espécie, para acasalar, e com outras espécies apenas para os caçarem. Os casais depois de formados duravam para o resto da vida, evitando contactos com outros casais ou indivíduos. Quase não emitiam sons, mesmo em combates até a morte, apenas os urros do adversário eram audíveis, quer ganhassem ou perdessem não havia manifestações sonoras. Mas os Marvlins não perdiam. Tinham a capacidade de perceber o que outro da mesma espécie sentia ou queria. Eram empáticos e quase telepáticos. Por isso Marvlin tinha a certeza que era o único que ainda vivia, por isso ele era o “Marvlin”.
Com os olhos habituados, adaptados à escuridão, conseguia ver o seu reflexo na parede lisa e molhada da gruta. Estava magro e com fome. Sentia-se mal. Na realidade, no último século, sentira-se em baixo de forma. Foi nessa altura que começaram as dores, tinham-se agravado nos derradeiros anos.
Esticou as asas, depois sacudiu-as. Teria que sair para caçar. Em breve, lá fora, seria noite. Tinha que esperar mais algumas horas, por aquela altura em que a cidade silenciava. Exercitou as asas mais uma vez.
O acesso à gruta, decorada com líquenes fluorescentes, era possível apenas pela água. A única entrada encontrava-se a vários metros de profundidade, por entre correntes e ondas mortíferas que esmagavam qualquer coisa (que se atrevesse a nadar nelas) contra as rochas afiadas das escarpas. Marvlin recolheu as asas, inspirou e mergulhou no poço. Percorreu o familiar e sinuoso túnel até ao mar.
Aproximou-se da superfície, o disco luminoso que era a lua brilhava nas águas escuras e salgadas. Com um impulso da cauda, colocou-se na direcção da cidade. Nadou a um ritmo cadenciado, escutando os sons propagados pela água num redor de muitos quilómetros. De repente, parou, concentrou-se no som longínquo. Aguardou até ter a certeza. Convencido, impulsionou-se com toda a força que conseguiu na direcção da superfície. Saltou para fora de água. No ar, abriu as asas e voou. Dessa maneira poderia percorrer a distância que o separava do amigo de longa data com maior rapidez. Encontrá-lo-ia a oeste, mantendo o mesmo rumo.
No local que calculou ser o indicado, voltou a mergulhar para escutar os chamamentos. Estava quase, em breve ocorreria o contacto. Os sons de baixa frequência eram irresistíveis para Marvlin. Aproximou-se da enorme sombra em movimento. Era uma baleia azul. Num movimento coordenado, fixou-se no dorso do gigante. Espetou as garras, sabia o quanto poderia penetrar de modo a não provocar qualquer dor ao cetáceo. Assim, e durante várias horas, viajaram juntos, sincronizando a respiração e partilhando o mesmo ar. Marvlin já nadara com esta baleia, conhecia-a, assim como conhecera os pais e avós dela. A relação entre os Marvlins e os gigantes dos mares era inexplicável e poderosa. A atracção era mútua, sempre fora assim desde o início. Marvlin nunca matara uma baleia azul, facilmente o poderia ter feito, não agora, mas quando jovem. No entanto seria incapaz de o fazer, mesmo que isso implicasse morrer de fome.
Por fim sentiu-se cansado. A baleia parecendo sentir o estado débil do seu passageiro, alterou a orientação, rumou na direcção do local que sabia ser o lar de Marvlin. Este entendeu e agradeceu a boleia. Naquela noite não caçou. Mais um dia passara sem comer.
Lá fora, o Sol estava no ponto mais alto. Marvlin despertou do estado de semi-consciência das últimas horas. No silêncio da gruta, apenas o som do pingar era audível, misturado com o da sua própria respiração, pesada e gorgolejante. Tinha que matar para comer, decidiu ele. Presas pequenas não o alimentariam convenientemente, além de despender muita energia para as capturar. Com presas grandes corria o risco de ser ferido, sabia que no seu frágil estado qualquer ferida seria mortal. Só lhe restava os humanos, pois lixo não comeria, apenas das pessoas que dele se alimentavam.
Naquela noite em especial, Marvlin sentia-se particularmente cansado. Antes de sair olhou para o buraco na rocha que fora a sua morada desde o dia em que nascera. Evocou a juventude, os actos irreflectidos e precipitados, típicos da tenra idade. Lembrava-se vividamente das tentativas para tocar a Lua, durante dias tentara alcançá-la, lutando infrutuosamente contra a poderosa força que o atraía, puxando para a Terra. Ou do dia em que passeando no mar fora atraído por um barulho estranho, nadando na direcção dele: Homens lançavam as redes ao mar para apanharem o peixe que nelas se enrolasse. Fora a primeira vez que encontrara seres humanos, por isso decidira investigar, estava curioso. Aproveitando a rede que era puxada para dentro da embarcação, agarrara-se às cordas entrelaçadas.
Na altura, o velho pescador, na escuridão da noite, esforçou a vista para tentar perceber o que era o vulto negro que se aproximava, momentos depois, lançou um grito, largou a rede e fugiu; ao mesmo tempo que Marvlin, assustado com a inesperada reacção, mergulhou na água. Fora essa a primeira vez que percebera que Marvlins e Humanos nunca poderiam conviver como iguais. Não entendera as palavras que tinham saído da boca do pescador, mas sentira os sentimentos de terror profundo que despertara nele. Recordou o passado, a memória do seu pai, como cuidara do jovem filho até se tornar num Marvlin adulto e independente. E como ele retribui quando o pai se tornou velho demais para conseguir caçar. Ainda hoje lhe martelava nos ouvidos o Urro da Morte que o progenitor soltara segundos antes do fim, esvaziando o derradeiro ar dos pulmões. Desde então ficara sozinho. Observou a gruta húmida, sabia que não voltaria a vê-la. Mergulhou.
Na cidade adormecida, o silêncio encontrava-se no ponto mais alto, a luminosidade ambiente quase ausente. Era a altura ideal. Emergiu da água, o barulho que fez ao sair do mar confundiu-se com o das ondas. Caminhou por entre as sombras. As docas eram o seu local favorito, ficava perto da segurança do mar, e era onde se encontravam os alvos ideais: os sem-abrigo. Aqueles eram considerados, pelos seus pares, a escória da humanidade, a escumalha. Ninguém se importava, ninguém dava conta se mais um desaparecesse. Agora, a ralé, eram alimento de fácil digestão para o grande Marvlin que durante séculos atravessara maremotos, criara vórtices tanto nos céus como na água, habitara na mente das gerações, na fronteira do real com o imaginário. Agora esquecido e velho era o final dos Marvlins.
Precisou de avançar para terra mais do que o habitual. Os rumores, entre os rejeitados da sociedade, da existência do demónio negro e das suas vítimas, começavam a levar os restantes a procurar locais mais seguros, afastando-se daquela zona. Atravessou uma estrada que normalmente, durante o dia, tinha muito movimento. Finalmente, num beco mal iluminado, avistou dois vultos enrolados no chão com pesadas mantas e tendas de cartão quase desfeitos. Em condições normais procuraria um alvo isolado, mas estava desesperado. Atacou o primeiro. A enérgica patada apanhou os trapos e pedras por debaixo dos farrapos. Duas unhas partiram-se ao embater no alvo granítico. Era uma armadilha. Logo em seguida, no segundo monte, ergueu-se um homem de meia-idade, de aspecto imundo, da boca desdentada saiu:
─ A mim não me apanhas tu, Diabo! ─ gritou e disparou o revolver em cima da besta. Depois de descarregada a arma, fugiu, gritando repetidamente em êxtase “Matei o Belzebu!”.
Os ferimentos eram mortais, mas Marvlin queria morrer no mar. Umas vezes caminhando outras arrastando-se tentou lá chegar. Surgiram-lhe na mente imagens da primeira migração de raias douradas que assistira, aquelas irreais folhas gigantes esvoaçando na água, reunidas em números incontáveis, deslizando silenciosamente debaixo das ondas, juntara-se a elas. O vulto negro na corrente em tons de ouro era aceite, nadando em perfeita harmonia, divagando na água azul. Sem qualquer transição, viu-se a voar por cima do arco-íris branco, pintado pela lua em cores ténues, debaixo das estrelas. De repente viu a claridade, sentiu o Arco-Íris de fogo, o Sol, as nuvens.
O pesado camião galgou, passando por cima de algo. O camionista mal teve tempo para travar, o obstáculo aparecera do nada, a cor escura tornava-o quase invisível na estrada de alcatrão. Os homens encarregados de despejar o lixo que seguiam atrás tiveram que recorrer a toda a sua perícia para não tombarem do veículo. Uns metros à frente, com o veículo imobilizado, o condutor saiu disparado da cabine.
─ Que foi aquilo? Parecia um cão, enorme! – disse ele para os homens ainda não recompostos do susto.
─ Sei lá eu! Tu é que és o condutor. Quase nos matavas!
─ Não tive culpa! Que querias que fizesse?
Caminharam na direcção da massa disforme prostrada na estrada.
─ Que é isto? Um cão? – questionou um deles.
─ Um cão com asas e sem pêlo? Não conheço tal raça de cachorros.
─ Pela cauda, a mim parece-me um crocodilo, ou algo da família, mas não dá para ver, a cabeça ficou esmagada.
─ Não quero saber, peguem nele e metam-no no camião, não quero perder mais tempo… ─ disse o condutor.
─ Acho que devíamos chamar a policia, não achas? ─ disse o mais novo do trio.
─ Para quê? Quero chegar a casa hoje! Não me arranjem problemas! Estamos perto da clínica veterinária, é um animal qualquer, fugiu ou foi abandonado, não vês como é só pele e osso?
─ Também acho, pega na outra ponta! ─ incentivou o outro ─ Hoje, joga o Benfica, quero ver o jogo mais logo! Não quero confusões com a policia…. ─ Em minoria, o jovem, aceitou relutantemente. Pegaram no corpo, cheirava a peixe, colocaram-no na compactadora do Camião do Lixo com dificuldade. No dia seguinte o acontecimento estaria esquecido.
Pendurado no camião em movimento, o jovem homem do lixo, levou a mão livre ao bolso e retirou o dente ainda ensanguentado. Observou-o, impressionado com o tamanho do marfim.
Biografia:
Valter Marques é um Eng. informático que é Escritor nas horas vagas, mas cujo sonho é ser Escritor a tempo inteiro e Eng. informático nos tempos livres. Nascido no ano da Revolução dos Cravos (para quê danificar a prosa com um inestético número quando se pode arremessar uma referência histórica, dando assim um ar mais ilustre), também ele ambiciona o seu golpe de estado na escrita criativa. O autor considera-se, principalmente, um criativo, sendo a escrita a ferramenta utilizada para capturar e emoldurar esse espírito inventivo, imaginativo. Enquanto estes últimos nasceram com ele, a escrita é uma paixão recente porém infindável.
A ficção científica ocupou, desde a infância, um lugar privilegiado nas preferências de leitura. A poderosa imaginação dos autores do género permitiram-lhe viajar por planetas distantes, conhecer raças, sociedades e realidades diferentes. Atingir a fronteira do espírito e criatividade Humana.
Qualquer narrativa tem apenas a ganhar com a introdução, no seu enredo, de um marciano esverdeado, com antenas, múltiplos tentáculos e excretando substâncias estranhas e repugnantes. E qual de nós poderá dizer que não teve um dia em que acordou com pior aspecto